Monday, November 13, 2006

Cecília Meireles



Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas;eu não tinha este coraçãoque nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil:— Em que espelho ficou perdidaa minha face?
De um lado cantava o sol De um lado cantava o sol,do outro, suspirava a lua.No meio, brilhava a tuaface de ouro, girassol!
Ó montanha da saudadea que por acaso vim:outrora, foste um jardim,e és, agora, eternidade!De longe, recordo a corda grande manhã perdida.
Morrem nos mares da vidatodos os rios do amor?
Ai! celebro-te em meu peito,em meu coração de sal,
Ó flor sobrenatural,grande girassol perfeito!
Acabou-se-me o jardim!
Só me resta, do passado,este relógio douradoque ainda esperava por mim . . .

O mosquito escreve
O Mosquito pernilongotrança as pernas,
faz um M,depois, treme, treme, treme,faz um
O bastante oblongo,faz um S.
O mosquito sobe e desce.
Com artes que ninguém vê,faz um Q,faz um U e faz um I.
Esse mosquitoesquisito
cruza as patas, faz um T.
E aí, se arredonda e faz outro O,mais bonito.
Oh!já não é analfabeto,esse inseto,pois sabe escrever o seu nome.
Mas depois vai procuraralguém que possa picar,pois escrever cansa,não é, criança?
E ele está com muita fome. (Cecília Meileles in “Ou isto ou aquilo”)

O canteiro está molhado
O canteiro está molhado.
Trarei flores do canteiro,
Para cobrir o teu sono.
Dorme, dorme, a chuva desce,
Molha as flores do canteiro.
Noite molhada de chuva,
Sem vento, nem ventania,
Noite de mar e lembranças...

Pássaro
Aquilo que ontem cantava já não canta.
Morreu de uma flor na boca:não do espinho na garganta.
Ele amava a água sem sede,e, em verdade,tendo asas, fitava o tempo,livre de necessidade. Não foi desejo ou imprudência:não foi nada.
E o dia toca em silêncioa desventura causada.
Se acaso isso é desventura:ir-se a vidasobre uma rosa tão bela,por uma tênue ferida.

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